
O céu envenenado disseminava angústia pelo vilarejo. Arrastavam-se os transeuntes de maneira silenciosa, com o ânimo que ainda lhes restava. Árvores de galhos secos ladeavam toda a extensão da rua e ofereciam repouso às aves, criando a imagem perturbadora do fim de tarde. Enquanto os habitantes da rua Thanatos gradativamente trancavam as portas, a figura solitária de Mariane tomava forma e seguia em direção à tabacaria. Fazia parte do ritual. A menina da boneca de pano e do vestidinho branco tinha o hábito de brincar em meio à penumbra, em frente ao estabelecimento do pai.
Uma pequena fresta, ao lado da janela lacrada do sótão, permitia ao jornaleiro observar os gestos do vulto que se deslocava na rua. Às vezes, a pouca luminosidade que incidia sobre a região, geralmente advinda da lâmpada da tabacaria, embaçava a visão do jornaleiro, privando-o, momentaneamente, de fitar o semblante de Mariane. Acometido de curiosidade, o observador tentava conservar os olhos na menina, a fim de se surpreender com o inusitado, embora a longuidão dos dois últimos anos não tenha oferecido o novo ao vilarejo. As ações humanas, exercidas naquele local, mostravam-se mecânicas. Não havia disposição, por parte de algum possível sublevador, para cessar o curso natural dos acontecimentos.
Entrou na tabacaria um peão. Encontrou-se com o pai de Mariane, com o objetivo de cumprir as devidas formalidades.
- Uma hora é o tempo que tens. Não mais! – estipulou o dono da tabacaria.
- Uma hora é o tempo que tenho. Sou cliente assíduo. Hei de desempenhar minha fidelidade. – asseverou o peão.
Ao sair da tabacaria, o visitante foi dar com Mariane.
- Diga-me, guria, diga-me o nome da boneca.
- Diga-me, guria, diga-me o nome da boneca.
- ...
- Ara, pimpolha, tenho um brinquedo que irá agradá-la.
Tomando a menina resignada pelas mãos, o peão a carregou para o lugar mais escuro da rua. Após uma hora, ambos estavam de volta à frente da tabacaria.
A casa do jornaleiro, do outro lado da rua, observava tristonha a inocência infantil. Se não estivesse submetida à ociosidade, certamente tomaria atitudes que seu alojado não providenciava. Mas quem espera que uma casa inconformada adote forças para subverter práticas delituosas? Talvez o jornaleiro, que a tudo observa, mas a nada contrapõe.
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Amanhece no vilarejo. Os louváveis trabalhadores caminham infelizes, cumprindo o ciclo inquebrantável da ordinariedade. Mais um dia que se repete!
3 comentários:
O vilarejo amanheceu num endereço novo. Ali onde o aqui faz lugar donde a palavra e o prazer se reconhecem. Linkadus endereçus est, hermano! Abs!
Passando pra conhecer, observando, lendo e já me supreendendo. Ótimo texto.
Esse texto é fantástico.
Estou passeando pelo seu blog.
Muito gostoso esse seu espaço.
parabéns!
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