quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Com a palavra, a Razão



(reposta ao Elogio da Loucura)

Dizem que estou em crise e que perdi meu posto para a Loucura, aquela vaca gorda. No entanto, sinto-me muito viva e vigorosa, o suficiente para calar os tolos. Com as plásticas da modernidade, meus seios ficaram durinhos, meus lábios carnudos e meu traseiro... Ah, meu traseiro? Todos ainda querem apertá-lo! Devo isso a Descartes, aquele racionalista convicto, que quase me confundiu com o Cético, meu pai, mas reconheceu-me no “Penso, logo existo”. Alguns tolos não entendem tal sentença e julgam-se mais sábios do que tantos outros. E julgam-se assim sem nunca me contatarem.

O esclarecimento, ou melhor, idealismo alemão, levou-me ao poder supremo, enquanto a Loucura revirava latas de lixo por uma rua qualquer de Amsterdã. É bem verdade que eu tive meus momentos de decadência com Nietzsche. Não há dúvida: eu sou e sempre fui muito mais atraente que a Loucura, e engane-se aquele que diz o contrário. Quer este enfrentar-me, afinal? Nietzsche almejou-me na cama, numa orgia na presença e na ação da Loucura. Como eu poderia subir na cama com aquela beata? De tão gorda que é, não haveria espaço para nós três. Abandonei Nietzsche para que este ficasse unicamente na companhia daquela imensa vaca. Dizem que o filósofo alemão morreu por causa dela. Eu, sábia, despontei imponente na contemporaneidade.

Quase perdi a razão, ou melhor, quase me perdi, quando Heidegger perguntou: “Arvorou-se a razão mesma como senhora da filosofia?” Ora, pergunta mais racional que esta não há. Todavia, crêem os tolos que foi precisamente nesse momento que entrei em crise. Para tolos, basta crença!

É claro que não preciso me justificar. Razão não justifica a razão, mas tenho um instrumento eficaz para apresentar a sanidade: a Lógica. Desvia-te dela e estarás a desviar-te de mim.

Confiai em mim, estou certa, afinal. Estou tão presente em vossas vidas, que qualquer tentativa de me abater torna-me ainda mais forte. Ora, aquele que me enfrentar, terá que me utilizar como instrumento de batalha. Há, pois, outro critério que não consista no usufruto de minhas delícias? Creio que não!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A Casa do Jornaleiro



O céu envenenado disseminava angústia pelo vilarejo. Arrastavam-se os transeuntes de maneira silenciosa, com o ânimo que ainda lhes restava. Árvores de galhos secos ladeavam toda a extensão da rua e ofereciam repouso às aves, criando a imagem perturbadora do fim de tarde. Enquanto os habitantes da rua Thanatos gradativamente trancavam as portas, a figura solitária de Mariane tomava forma e seguia em direção à tabacaria. Fazia parte do ritual. A menina da boneca de pano e do vestidinho branco tinha o hábito de brincar em meio à penumbra, em frente ao estabelecimento do pai.

Uma pequena fresta, ao lado da janela lacrada do sótão, permitia ao jornaleiro observar os gestos do vulto que se deslocava na rua. Às vezes, a pouca luminosidade que incidia sobre a região, geralmente advinda da lâmpada da tabacaria, embaçava a visão do jornaleiro, privando-o, momentaneamente, de fitar o semblante de Mariane. Acometido de curiosidade, o observador tentava conservar os olhos na menina, a fim de se surpreender com o inusitado, embora a longuidão dos dois últimos anos não tenha oferecido o novo ao vilarejo. As ações humanas, exercidas naquele local, mostravam-se mecânicas. Não havia disposição, por parte de algum possível sublevador, para cessar o curso natural dos acontecimentos.

Entrou na tabacaria um peão. Encontrou-se com o pai de Mariane, com o objetivo de cumprir as devidas formalidades.

- Uma hora é o tempo que tens. Não mais! – estipulou o dono da tabacaria.

- Uma hora é o tempo que tenho. Sou cliente assíduo. Hei de desempenhar minha fidelidade. – asseverou o peão.

Ao sair da tabacaria, o visitante foi dar com Mariane.

- Diga-me, guria, diga-me o nome da boneca.

- ...

- Ara, pimpolha, tenho um brinquedo que irá agradá-la.

Tomando a menina resignada pelas mãos, o peão a carregou para o lugar mais escuro da rua. Após uma hora, ambos estavam de volta à frente da tabacaria.

A casa do jornaleiro, do outro lado da rua, observava tristonha a inocência infantil. Se não estivesse submetida à ociosidade, certamente tomaria atitudes que seu alojado não providenciava. Mas quem espera que uma casa inconformada adote forças para subverter práticas delituosas? Talvez o jornaleiro, que a tudo observa, mas a nada contrapõe.

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Amanhece no vilarejo. Os louváveis trabalhadores caminham infelizes, cumprindo o ciclo inquebrantável da ordinariedade. Mais um dia que se repete!