quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O empirismo de Berkeley e a questão do mundo exterior


A filosofia de Berkeley se caracteriza por qualificar a existência das coisas mediante os sentidos, isto é, o mundo não é outra coisa senão aquilo que é apresentado aos sentidos. Assim sendo, não se encontra no empirismo de Berkeley a validação de uma substância material, que se conserva oculta às qualidades sensíveis. O filósofo, pois, rejeita a possibilidade de existência de algo “misterioso” por trás de nossas representações. Por conseguinte, não há nada na coisa material que não se apresente à percepção.

Em decorrência disso, pode-se considerar que é a aparência a verdadeira realidade, uma vez que Berkeley deposita plena confiança nos sentidos. Mas a condição para a existência das coisas consiste em que elas sejam percepcionadas, isto é, para que algo exista é necessário que a mente opere sobre o objeto. Isso faz suscitar o seguinte problema: a realidade dos objetos só existe na subjetividade do percepcionante? A título de exemplo: o som de uma velha árvore que cai, no meio de uma floresta, existe mesmo sem haver alguém que o perceba? Para Berkeley, aquilo que não percepcionamos não existe. Existe somente aquilo que pode ser percebido – ser consiste em ser percebido. Com isso, Berkeley procura desvalidar a tese de que há algo entre a mente que percepciona e a coisa percepcionada, isto é, não há nenhuma intervenção entre os observadores e os objetos observados.

No entanto, se pensarmos que só existe aquilo que é captado pelos sentidos, então como seria possível um objeto ser percepcionado ao mesmo tempo por vários observadores? Para isso, Berkeley introduz a tese de que existe um Deus bondoso, que intervem com o objetivo de nos emitir nossas idéias, numa ordem harmoniosa. Esse Deus1 assegura, portanto, a regularidade do mundo, uma vez que o percebe e domina seus eventos. Assim, Deus é o sustentáculo do mundo.

Um ponto importante da filosofia de Berkeley consiste na crítica que tece acerca das idéias abstratas. Ele não nega, no entanto, que haja idéias gerais, mas anula a existência de idéias gerais abstratas2. Berkeley procura mostrar, na introdução do Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, a impossibilidade de abstrair qualidades que não podem ser separadas do objeto. Ele parte de uma análise acerca das idéias simples, decompondo de um objeto complexo suas qualidades. Abstrair, por exemplo, de uma rosa particular suas qualidades, que correspondem à forma, à cor, ao tamanho, ao cheiro, etc, e partir daí para uma idéia geral abstrata de rosa constitui um processo impossível, uma vez que não se pode conceber uma rosa sem tamanho, sem cor, etc. A idéia geral, todavia, existe não numa ordem de abstração, mas pela deliberação de se tomar um objeto como modelo para generalização, como podemos imaginar, com o mesmo exemplo, uma rosa que represente em nossa mente todas as outras rosas.

A crítica berkeleina às idéias abstratas consiste em contrapor a tese que Locke sustenta, a saber, de que nomes são sinais de idéias, e que estas são sinais de coisas, e que isso implica numa essência nominal. Com base nisso, Berkeley identifica o abuso da linguagem3.

A fim de justificar sua filosofia imaterialista, Berkeley, além de negar enfaticamente a possibilidade de existência de idéias gerais abstratas, contrapõe Descartes, quando esse sugere a existência de duas noções diferentes de substância.
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1 Por vezes, Berkeley designa Deus como L’Agent suprême (Agente Supremo) ou l’intelligence (Inteligência), tal como consta no parágrafo 62 do Traité des Principes de la Connaissance Humaine. L’édition de la Librairie Armand Collin de 1926.

2 Introdução, parágrafo 12: Et ici on remarquera que je ne nie point absolument qu’il y ait des idées générales, mais seulement qu’il y ait des idées générales abstraites.”

3[...]et à m’occuper de la cause à laquelle paraissent dus en grande partie les embarras et perplexités de la spéculation et les innombrables erreurs et difficultés qui se rencontrent dans toutes les branches de la connaissance”. Parágrafo 6, da introdução do Tratado.

Segundo Descartes, então, existem dois tipos de substância, a saber, a pensante (res cogitans) e a extensa (res extensa). Em outros termos, o filósofo francês afirma a existência da substância espiritual e da substância material.

Berkeley inverte o percurso cartesiano e, não partindo das idéias para a representação das coisas, admite que o conhecimento se dá mediante o contato com o objeto. Assim sendo, o irlandês anula a possibilidade de existência da substância material, posto que todos os elementos que compõem o mundo só existem por conta de um ser ativo que os percebe. Portanto, como evidencia a fórmula “esse est percepi”, Berkeley não admite a existência de substâncias materiais, mas afirma tão-somente a existência de substâncias espirituais.

Entende-se por “substância material” um objeto que existe fora do espírito, e, portanto, existe por si mesmo. Nos parágrafos 9 e 10 do Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, Berkeley assevera que existe contradição na separação entre as qualidades primárias - que correspondem à extensão, forma, movimento, repouso, impenetrabilidade e número - e as qualidades secundárias - a saber, qualidades sensíveis, como cor, som, sabor, etc. A contradição ocorre exatamente por não ser possível abstrair as qualidades secundárias das primárias, ou seja, não é possível, por maior que seja o esforço, conceber extensão e movimento de um corpo sem as qualidades sensíveis.

Dessa forma, aquilo que se nomeia substância impensante não passa de um abuso da linguagem, uma vez que o mundo exterior só existe em função da mente percepcionante. A existência contínua dos objetos que compõem o mundo é assegurada pela existência de uma mente absoluta, que a tudo percepciona. O mundo, portanto, é um discurso que Deus faz aos homens.

Um comentário:

Cel Bentin disse...

'O mundo, portanto, é um discurso que Deus faz aos homens.'

Curti o modo como você desenha a linguagem e lança para os leigos fisolóficos feito moá... Ainda que não tenha eu profundidade o suficiente no que toca o abismo santo da filosofia, conseguia acompanhar o sentido e ser levado nesse salto, camarada. Um achado a frase final... Fico só pensando o que diria a esse respeito o escrevinhador Ari, com sua Retórica e Arte Poética... Dá caldo esse debate! Abs, Feliz Natal, em discurso silencioso, hoje.