quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Balouço


Rompia pertinaz o vento
Ia e vinha, rangia
Sebento

Equipara a terçado
Foice e faca
Machado

A criança que ali brinca
Assassina e indigna
Feria

Co-memoro sonante
Ante ao ir e vir
Do balouço
Cantante

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O empirismo de Berkeley e a questão do mundo exterior


A filosofia de Berkeley se caracteriza por qualificar a existência das coisas mediante os sentidos, isto é, o mundo não é outra coisa senão aquilo que é apresentado aos sentidos. Assim sendo, não se encontra no empirismo de Berkeley a validação de uma substância material, que se conserva oculta às qualidades sensíveis. O filósofo, pois, rejeita a possibilidade de existência de algo “misterioso” por trás de nossas representações. Por conseguinte, não há nada na coisa material que não se apresente à percepção.

Em decorrência disso, pode-se considerar que é a aparência a verdadeira realidade, uma vez que Berkeley deposita plena confiança nos sentidos. Mas a condição para a existência das coisas consiste em que elas sejam percepcionadas, isto é, para que algo exista é necessário que a mente opere sobre o objeto. Isso faz suscitar o seguinte problema: a realidade dos objetos só existe na subjetividade do percepcionante? A título de exemplo: o som de uma velha árvore que cai, no meio de uma floresta, existe mesmo sem haver alguém que o perceba? Para Berkeley, aquilo que não percepcionamos não existe. Existe somente aquilo que pode ser percebido – ser consiste em ser percebido. Com isso, Berkeley procura desvalidar a tese de que há algo entre a mente que percepciona e a coisa percepcionada, isto é, não há nenhuma intervenção entre os observadores e os objetos observados.

No entanto, se pensarmos que só existe aquilo que é captado pelos sentidos, então como seria possível um objeto ser percepcionado ao mesmo tempo por vários observadores? Para isso, Berkeley introduz a tese de que existe um Deus bondoso, que intervem com o objetivo de nos emitir nossas idéias, numa ordem harmoniosa. Esse Deus1 assegura, portanto, a regularidade do mundo, uma vez que o percebe e domina seus eventos. Assim, Deus é o sustentáculo do mundo.

Um ponto importante da filosofia de Berkeley consiste na crítica que tece acerca das idéias abstratas. Ele não nega, no entanto, que haja idéias gerais, mas anula a existência de idéias gerais abstratas2. Berkeley procura mostrar, na introdução do Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, a impossibilidade de abstrair qualidades que não podem ser separadas do objeto. Ele parte de uma análise acerca das idéias simples, decompondo de um objeto complexo suas qualidades. Abstrair, por exemplo, de uma rosa particular suas qualidades, que correspondem à forma, à cor, ao tamanho, ao cheiro, etc, e partir daí para uma idéia geral abstrata de rosa constitui um processo impossível, uma vez que não se pode conceber uma rosa sem tamanho, sem cor, etc. A idéia geral, todavia, existe não numa ordem de abstração, mas pela deliberação de se tomar um objeto como modelo para generalização, como podemos imaginar, com o mesmo exemplo, uma rosa que represente em nossa mente todas as outras rosas.

A crítica berkeleina às idéias abstratas consiste em contrapor a tese que Locke sustenta, a saber, de que nomes são sinais de idéias, e que estas são sinais de coisas, e que isso implica numa essência nominal. Com base nisso, Berkeley identifica o abuso da linguagem3.

A fim de justificar sua filosofia imaterialista, Berkeley, além de negar enfaticamente a possibilidade de existência de idéias gerais abstratas, contrapõe Descartes, quando esse sugere a existência de duas noções diferentes de substância.
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1 Por vezes, Berkeley designa Deus como L’Agent suprême (Agente Supremo) ou l’intelligence (Inteligência), tal como consta no parágrafo 62 do Traité des Principes de la Connaissance Humaine. L’édition de la Librairie Armand Collin de 1926.

2 Introdução, parágrafo 12: Et ici on remarquera que je ne nie point absolument qu’il y ait des idées générales, mais seulement qu’il y ait des idées générales abstraites.”

3[...]et à m’occuper de la cause à laquelle paraissent dus en grande partie les embarras et perplexités de la spéculation et les innombrables erreurs et difficultés qui se rencontrent dans toutes les branches de la connaissance”. Parágrafo 6, da introdução do Tratado.

Segundo Descartes, então, existem dois tipos de substância, a saber, a pensante (res cogitans) e a extensa (res extensa). Em outros termos, o filósofo francês afirma a existência da substância espiritual e da substância material.

Berkeley inverte o percurso cartesiano e, não partindo das idéias para a representação das coisas, admite que o conhecimento se dá mediante o contato com o objeto. Assim sendo, o irlandês anula a possibilidade de existência da substância material, posto que todos os elementos que compõem o mundo só existem por conta de um ser ativo que os percebe. Portanto, como evidencia a fórmula “esse est percepi”, Berkeley não admite a existência de substâncias materiais, mas afirma tão-somente a existência de substâncias espirituais.

Entende-se por “substância material” um objeto que existe fora do espírito, e, portanto, existe por si mesmo. Nos parágrafos 9 e 10 do Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, Berkeley assevera que existe contradição na separação entre as qualidades primárias - que correspondem à extensão, forma, movimento, repouso, impenetrabilidade e número - e as qualidades secundárias - a saber, qualidades sensíveis, como cor, som, sabor, etc. A contradição ocorre exatamente por não ser possível abstrair as qualidades secundárias das primárias, ou seja, não é possível, por maior que seja o esforço, conceber extensão e movimento de um corpo sem as qualidades sensíveis.

Dessa forma, aquilo que se nomeia substância impensante não passa de um abuso da linguagem, uma vez que o mundo exterior só existe em função da mente percepcionante. A existência contínua dos objetos que compõem o mundo é assegurada pela existência de uma mente absoluta, que a tudo percepciona. O mundo, portanto, é um discurso que Deus faz aos homens.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Com a palavra, a Razão



(reposta ao Elogio da Loucura)

Dizem que estou em crise e que perdi meu posto para a Loucura, aquela vaca gorda. No entanto, sinto-me muito viva e vigorosa, o suficiente para calar os tolos. Com as plásticas da modernidade, meus seios ficaram durinhos, meus lábios carnudos e meu traseiro... Ah, meu traseiro? Todos ainda querem apertá-lo! Devo isso a Descartes, aquele racionalista convicto, que quase me confundiu com o Cético, meu pai, mas reconheceu-me no “Penso, logo existo”. Alguns tolos não entendem tal sentença e julgam-se mais sábios do que tantos outros. E julgam-se assim sem nunca me contatarem.

O esclarecimento, ou melhor, idealismo alemão, levou-me ao poder supremo, enquanto a Loucura revirava latas de lixo por uma rua qualquer de Amsterdã. É bem verdade que eu tive meus momentos de decadência com Nietzsche. Não há dúvida: eu sou e sempre fui muito mais atraente que a Loucura, e engane-se aquele que diz o contrário. Quer este enfrentar-me, afinal? Nietzsche almejou-me na cama, numa orgia na presença e na ação da Loucura. Como eu poderia subir na cama com aquela beata? De tão gorda que é, não haveria espaço para nós três. Abandonei Nietzsche para que este ficasse unicamente na companhia daquela imensa vaca. Dizem que o filósofo alemão morreu por causa dela. Eu, sábia, despontei imponente na contemporaneidade.

Quase perdi a razão, ou melhor, quase me perdi, quando Heidegger perguntou: “Arvorou-se a razão mesma como senhora da filosofia?” Ora, pergunta mais racional que esta não há. Todavia, crêem os tolos que foi precisamente nesse momento que entrei em crise. Para tolos, basta crença!

É claro que não preciso me justificar. Razão não justifica a razão, mas tenho um instrumento eficaz para apresentar a sanidade: a Lógica. Desvia-te dela e estarás a desviar-te de mim.

Confiai em mim, estou certa, afinal. Estou tão presente em vossas vidas, que qualquer tentativa de me abater torna-me ainda mais forte. Ora, aquele que me enfrentar, terá que me utilizar como instrumento de batalha. Há, pois, outro critério que não consista no usufruto de minhas delícias? Creio que não!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A Casa do Jornaleiro



O céu envenenado disseminava angústia pelo vilarejo. Arrastavam-se os transeuntes de maneira silenciosa, com o ânimo que ainda lhes restava. Árvores de galhos secos ladeavam toda a extensão da rua e ofereciam repouso às aves, criando a imagem perturbadora do fim de tarde. Enquanto os habitantes da rua Thanatos gradativamente trancavam as portas, a figura solitária de Mariane tomava forma e seguia em direção à tabacaria. Fazia parte do ritual. A menina da boneca de pano e do vestidinho branco tinha o hábito de brincar em meio à penumbra, em frente ao estabelecimento do pai.

Uma pequena fresta, ao lado da janela lacrada do sótão, permitia ao jornaleiro observar os gestos do vulto que se deslocava na rua. Às vezes, a pouca luminosidade que incidia sobre a região, geralmente advinda da lâmpada da tabacaria, embaçava a visão do jornaleiro, privando-o, momentaneamente, de fitar o semblante de Mariane. Acometido de curiosidade, o observador tentava conservar os olhos na menina, a fim de se surpreender com o inusitado, embora a longuidão dos dois últimos anos não tenha oferecido o novo ao vilarejo. As ações humanas, exercidas naquele local, mostravam-se mecânicas. Não havia disposição, por parte de algum possível sublevador, para cessar o curso natural dos acontecimentos.

Entrou na tabacaria um peão. Encontrou-se com o pai de Mariane, com o objetivo de cumprir as devidas formalidades.

- Uma hora é o tempo que tens. Não mais! – estipulou o dono da tabacaria.

- Uma hora é o tempo que tenho. Sou cliente assíduo. Hei de desempenhar minha fidelidade. – asseverou o peão.

Ao sair da tabacaria, o visitante foi dar com Mariane.

- Diga-me, guria, diga-me o nome da boneca.

- ...

- Ara, pimpolha, tenho um brinquedo que irá agradá-la.

Tomando a menina resignada pelas mãos, o peão a carregou para o lugar mais escuro da rua. Após uma hora, ambos estavam de volta à frente da tabacaria.

A casa do jornaleiro, do outro lado da rua, observava tristonha a inocência infantil. Se não estivesse submetida à ociosidade, certamente tomaria atitudes que seu alojado não providenciava. Mas quem espera que uma casa inconformada adote forças para subverter práticas delituosas? Talvez o jornaleiro, que a tudo observa, mas a nada contrapõe.

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Amanhece no vilarejo. Os louváveis trabalhadores caminham infelizes, cumprindo o ciclo inquebrantável da ordinariedade. Mais um dia que se repete!